Leitura e escrita poeticamente construídos

“A palavra é metade de quem a pronuncia e metade de quem a escuta.” (Montaigne).

Dia de sol. Crianças entrando pela sala, se arrumando nas carteiras e estranhando o jornal na janela. Dia de mais uma história, dessa vez contada no escuro da sala, daí a importância do jornal para impedir que a claridade entrasse. O globo terrestre circulava nas mãos das crianças.

Comigo, o livro: Casas, da poeta Roseana Murray, já conhecida das crianças pela quantidade de textos usados. O poema do dia era: Um buraco no chão e serviria de pretexto para pensarmos sobre o dia e a noite, o Japão do outro lado do mundo, o mundo e todas as outras questões que surgissem. Para finalizar, faríamos um cartaz com a escrita do que cada um mais gostou de aprender e deixaríamos à vista para que a turma da tarde pudesse ler e também e se interessar pelo assunto.

O texto dizia o seguinte:

Um buraco no chão

Será que se a gente

Cavar um buraco no chão

A gente vai parar no Japão?

Será que lá as casas

São de papel

E o que lá é céu

Aqui é chão?

Será que no Japão

A chuva cai ao contrário

E o tempo anda de marcha a ré?

Quando aqui é noite

Lá é dia

Quando lá é dia

Aqui é noite

E por causa dessa grande confusão

Não cavo um buraco no chão

Não vou mais pro Japão.

Terminada a leitura conversamos sobre a cultura japonesa:

- Tia, lá eles comem com pauzinho!

- E lá, eles escrevem com outra letra...

Assim, fomos construindo uma rede de saberes que trazia novas perguntas e se esclarecia no movimento da curiosidade. Então, lancei a pergunta:

- Por que quando lá é dia aqui é noite? Para onde vai o Sol quando aqui é noite?

Silêncio e, em seguida, a avalanche de respostas:

- O sol é uma estrela.

Imagino que ele tenha pensado que o sol de dia brilha e à noite vira estrela.

- O sol se esconde atrás da estrela.

- Ele vai para o fundo do mar.

Penso que, pela nossa cidade ser uma cidade que gira em torno do mar e o sol se pôr no mar, a criança tenha chegado a essa conclusão.

- Ele fica atrás da lua.

- Ele fica atrás da nuvem.

Mas, e em noite de céu estrelado? Perguntei.

- O sol é grande? Por que ele parece pequeno?

Respondi que era porque o sol está longe. Ele é uma bola de fogo enorme. Quando você vê um amigo longe, ele não parece pequeno?

- Se a gente for de avião, o sol queima a gente?

Não, o sol está muito longe. Expliquei.

- De foguete queima?

Nem de foguete. Disse que mesmo indo muito longe com o foguete o sol não nos queimaria e que o calor produzido por ele é que nos mantém vivos.

A partir de todas essas hipóteses, subi na cadeira com o globo e com a lanterna e, na sala escura, simulei o universo:

- Gente, essa sala toda é o universo. Há mais planetas que o nosso. Qual o nome do nosso planeta?

- Terra!

- É igual ao globo, mas é “mais grande” que o globo.

- Ela é redonda.

- Ela fica rodando.

- O planeta é bom para a gente.

- Pois é, continuei, ela fica rodando perto do sol. Tem hora que o sol ilumina ela. Mas olha só, dá pra iluminar tudo?

- Não!

- Então! Vou colocar um adesivo no Japão e outro no Brasil para a gente entender melhor o que acontece. Olha só, quando tem luz no Japão, tem luz no Brasil?

- Não!

- Então lá é dia e aqui é noite. E quando lá fica escuro e a gente tem luz?

- Aí aqui é dia!

- Agora a gente já sabe para onde vai o sol quando não está aqui?

- Vai pro Japão!

- É, vai pro outro lado do mundo, iluminar outros países, não só o Japão. A gente pode ver no globo outros países.

Acende-se a luz e a aula continua. Desenhei e disse o nome dos outros planetas no quadro-negro, caso alguém se interessasse em saber. O globo continua circulando e as crianças vão encontrando os nomes de países que eles conheceram no álbum da Copa do Mundo. Enquanto alguns observavam o globo e outros folheavam o livro de poesia, iniciei a confecção do cartaz com umas poucas crianças que se interessaram em escrever primeiro. Aos poucos, todas as crianças registraram suas impressões sobre a aula. Para um aluno, escrever naquele momento era acabar com a brincadeira.

- Tia, será que uma vez na vida a gente não pode só desenhar?

- Sim, a gente pode. Mas hoje seria interessante escrever para que seus amigos da tarde possam ler o que você aprendeu e conhecer também o que você conheceu.

Muito contrariado, escreveu. Na folha, muito mais desenho que escrita, uma forma de protesto. Na verdade, ele não queria perder tempo. Paralisado após escrever, nós até podíamos ler seus pensamentos, o olhar perdido na aula que continua na imaginação, criança fisgada pela curiosidade, pela vontade de ler e conhecer o mundo.

Senti-me com o dever cumprido. Um pensamento livre vale muito. Não há nada pior que um pensamento aprisionado, cartilhado, silabado. A leitura do contexto, a produção do texto sentido, tocado, refletido, promove uma interação enriquecedora entre a linguagem escrita e o mundo lido, na construção do homem que pensa e reflete sobre suas práticas e as práticas cotidianas.

Quantas coisas mais as crianças aprenderam nesse dia, aprendizados que fogem do meu domínio? Quantos saberes se acumularam e foram compartilhados entre as crianças, que não passaram por mim? Acionado o botão do pensar, a sala de aula se transforma em um grande laboratório de porquês e respostas, misturadas e separadas continuamente, que nos ajudam a pensar a prática e o processo de aprendizagem de muitas maneiras possíveis.

Pensar a criança como sujeito, que pensa e reflete sobre sua escrita, sobre a escola e sobre sua forma de lidar com o mundo significa respeitar as diferentes experiências da criança com esse mundo e com o mundo escrito proporcionando, de diferentes maneiras, oportunidades para que essas reflexões e pensamentos se ampliem. Do alargamento das nossas percepções, levados pela curiosidade, primeiro ingênua e depois crítica, é que nos tornamos capazes de compreender melhor o mundo que é transformado pelas mãos de quem pensa sobre ele. E é na construção desse novo mundo, mais justo e humano, que se faz necessária a formação desse cidadão pensante, inquieto e curioso.


Por: Ryane Pinto

Graduação em pedagogia pela Uerj-FFP (Faculdade de Formação de Professores)
Pós-graduação em Alfabetização das crianças das classes populares - UFF

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